segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Intuição ou indução ? Izabelle Valladares

Conto: Intuição ou Indução?






Seu trajeto era sempre o mesmo. Cercado de pó, de mato, de espinhos.
Falava pouco no dia-a-dia, no trabalho não ouviam sua voz, mas cantarolava todos os dias na hora do regresso para casa.
A lida no canavial não era nada fácil, dias de luta, muitas noites pela metade, fuligem entrando pelas narinas até não poder mais.
Não conhecia outra vida e gostava da vida que tinha. Ali na cidade de Araraquara, interior paulista, ela nasceu, cresceu,casou-se, e o trabalho era sempre o mesmo.
Aliás, nem queria outro, não saberia como fazê-lo, sua mãe foi cortadora de cana, seus avós foram cortadores de cana, seu pai era cortador de cana. E por que ela não haveria de ser?
Em alguns momentos do dia se sentia até cansada, mas sabia que ao chegar em casa o alimento dos meninos não faltava.
Chamava-se Laura, tinha os olhos amarelos e os cabelos também.
Na adolescência chegou a ter um sorriso bonito, logo castigado pelo tempo e pelos maus tratos, o corpo tinha curvas generosas, por que não dizer, voluptuosas, era forte e sabia lidar bem com o trabalho no canavial.
Conheceu Daucilei aos 14 anos, e com 15 anos, já havia emprenhado. No fundo achava até que tinha sido bom, afinal, iria ter sua própria casa, iria morar com ele bem pertinho do riacho.
Daucilei antes de conhecer Laura já havia feito uma pequena casa na beira do regaço, aonde criava umas duas dúzias de galinhas e uma meia dúzia de porcos, missão esta que passou para Laura depois do casamento.
Daucilei não era feio, não era alto, nem baixo, e sabia ler e escrever, coisa rara de se encontrar no meio de um canavial, e já estava ensinando a Laura também.
A casinha era bem humilde, logo que foram morar nela, ainda tinha o chão de terra batida, depois substituído por uma nata de cimento bem lisinha que dava gosto de se olhar, era o orgulho de Laura.

Na casa tinham janelas grandes de madeira, uma porta a frente e uma que dava para os fundos; na cozinha havia uma mesa com quatro cadeiras, os meninos preferiam sempre comer com o prato na mão; no quarto, uma cama de casal, presente do capataz da fazenda em que trabalhavam.
Conforme os meninos foram nascendo, Daucilei fazia de tábuas, camas seguras e resistentes. Não tinham televisão, apenas um rádio de pilhas que acompanhava Laura aonde fosse.
Ele era um sonhador, pensava em um dia sair dali, comprar um caminhão, viajar e conhecer novos lugares. Ela não! Queria ficar ali mesmo, ver o sol nascer no caminhão dos bóias frias, ouvir seu rádio na hora do almoço e poder ir dormir ouvindo os ‘’causos’’ contados no programa local e assim os anos de Laura iam passando, os fincos causados na pele pelo tempo e pelo sol, precocemente lhe davam um ar de envelhecimento, mas para Laura não chegava a ser um problema, já era mãe de 6 meninos, não precisava mais aparentar ser moça.
Mas a paz de Laura e Daucilei estava com os dias contados, eis que surge na cidade um grupo novo de agricultores, vindo de Alagoas, fugindo da sazonalidade do canavial local, vinham para ajudar na colheita, gente nova, com sonhos borbulhando e cheios de coragem.
Todo dia no canavial, agora, era uma festa, regada de pinga e musica depois do expediente, o caminhão que levava o povo pra cidade saía de duas em duas horas, Daucilei começou há demorar 2 horas a mais que Laura, para voltar, passando depois para 4, depois para 6, até que chegou ao ponto de dormir por lá, bêbado, sem banho, mas certamente, bem acompanhado.
Laura ouvia rumores do que estava acontecendo, mas não queria acreditar, falavam que Daucilei havia se encantado com uma Alagoana, que havia chegado recentemente com a turma nova para trabalhar na colheita.
Laura não queria aceitar, começou então a ficar triste e se isolar, já não ouvia mais seu rádio, já não cantarolava no seu trajeto de volta. A tristeza havia feito morada em sua alma, trabalhava muitas vezes com um nó tão apertado na garganta que chegava doer, uma dor seca, quente e silenciosa, uma dor de descobrir o que não queria enxergar.
Na noite de São João, Laura decidiu não ir embora antes do marido, ficaria no baile ao seu lado, mostrando a todos aonde era o seu lugar, levou sua melhor roupa, um vestido azul turquesa de cetim com renda branca na ponta. Quando a lida chegou ao fim, foi para o barracão banhar-se e se arrumar para a festa, queria surpreender Daucilei, havia amarrado os cabelos no alto para dar um ar mais jovial e tinha até mesmo comprado uma alfazema para se perfumar.
Ao sair do barracão, todos se espantaram com a formosura de Laura, perfumada e bem apresentada, não parecia nem a velha Laura suja de fuligem da lida. Laura entra no salão, olha para um lado, olha para o outro e não vê Daucilei, procura na parte externa do barracão. Um murmurar diferente no matagal chama a atenção de Laura, e nesse momento seu grande coração fica do tamanho de uma ervilha, exprimido, quieto, sofrido, seus olhos se deparam com Daucilei em cima da Alagoana, que só percebeu que os pés parados ao lado do casal de amantes, eram de Laura, porque a Alagoana deu um grito ao vê-la ali de pé, parada, como uma assombração que surge do nada.
Laura pensou em gritar, pensou em xingar, pensou em agredi-los, em ter nas mãos um facão e atravessar os dois juntos em um só golpe, mas Laura não fez nada, olhou os dois bêbados se vestindo apressadamente, nervosos com sua presença. Laura virou-se e foi sentar sozinha no fundo do caminhão que a levaria de volta para casa, ali repensava sua vida, tentava entender não o motivo da vida dura, que sempre teve, mas o motivo de nunca ter se achado infeliz, muito pelo contrario, amava sua casa, seus amigos, seus filhos, seu radinho e amava Daucilei, pensava nas pessoas que se contentavam com muito pouco, mas não era o caso dela, ela tinha muito, tinha tudo o que queria, tinha tudo que precisava, em alguns momentos do dia, principalmente nos dias que sucediam as noites de amor nos braços de Daucilei, se sentia a mulher mais feliz do mundo.
Laura podia sentir o clima pesado no baile, as pessoas andavam em volta do caminhão e sem perceber que Laura estava ali, comentavam a infelicidade de Daucilei, ter sido pego em flagrante. Não era a infelicidade dela de ter sido traída, mas dos dois cafajestes que haviam sido desmascarados.
O sentimento que no inicio era desconfiança, tornou-se certeza, a solidão tornou-se frieza, o desejo tornou-se ojeriza e o amor, sublime amor, tornou-se vingança.
Laura no dia seguinte decidiu não ir trabalhar, Daucilei entrou mudo em casa e saiu calado, durante a madrugada ainda tentou uma aproximação, encostando o dedo mínimo no pé de Laura, logo tendo a resposta da repulsa da mulher, que se levantou e foi deitar-se no chão. Quando Daucilei acordou para ir trabalhar, viu Laura passando as roupas de ir para a igreja dos meninos, na cozinha, não entendeu para aonde iriam, se naquele dia não tinha missa, mas sabia que de nada adiantaria perguntar, ela certamente não responderia.
Após a saída de Daucilei, Laura pegou uma blusa velha de cada filho, passou e esticou na cama e pegou seu vestido da noite anterior e fez o mesmo, pegou os meninos, fechou a porta da frente da casa e se dirigiu para os fundos.
Para Daucilei, a tarde passara depressa, sabendo do problema da noite anterior, sabia que chegar em casa naquele dia tarde, não seria o mais indicado.
Ao entrar em casa, teve um súbito pressentimento do mal, ao ver a porta da frente trancada, deu a volta pelos fundos e o terror se instalou em seu subconsciente ao ver o facão que Laura usava no canavial, pingando sangue na soleira da porta, entrou em sua casa cego de dor do que poderia encontrar, a cena vista foi a pior que sua mente poderia imaginar, as roupas esticadas na cama, cada uma com um coração em cima banhando de sangue um quarto que outrora fora banhado de amor, um bilhete mal escrito colado na parede dizia: “Fomos para a casa do pai, esperamos você lá”.
E naquele frenesi louco, entre a dor e a consciência pesada, Daucilei não pensou duas vezes, foi até o quintal, pegou uma corda e deu o fim a própria vida, se enforcando.
A tristeza tomou conta da cidade, a própria policia tinha medo de chegar perto da casa para concluir as investigações.
Passado alguns dias, Laura apareceu com os meninos, ninguém entendeu nada, todos tinham certeza que ela havia matado-os e se matado, Laura com a frieza de quem perde o sentimento de consideração a qualquer ser humano, disse:
 - Vocês são loucos, nunca mataria meus meninos por causa de um cachaceiro infiel, o burro que não leu o verso do bilhete, que dizia: ‘’Estou com saudade da família, se quiser aparece na casa do pai. Matei os porcos para você aproveitar minha ausência e fazer uma festa pra sua amante, pois deles eu não cuido mais’’.
O delegado atordoado com a história perguntou:
- Mas porque arrancou os corações?
- Por que o maldito nunca saberia que os porcos estavam mortos nos fundos da casa, se eu não indicasse pra ele, apodreceriam lá!E como eu iria arrancar meu próprio coração e ainda sair andando? Tem que ser muito burro pra pensar numa coisa dessas.
Assim a triste história de traição de Daucilei teve fim, até hoje em Araraquara, se comenta o fato, ninguém sabe se o suicídio de Daucilei foi friamente calculado e induzido ou simplesmente uma forte intuição de sua esposa com a moral ferida, não sabiam se Laura era inteligente demais, inocente demais ou Daucilei era burro demais, o que se sabe é que a vida de Laura continuava a mesma, trabalhava, e cantarolava na volta com alivio de não ter mais porcos pra cuidar. Como diz o ditado popular:
“O mal do urubu é pensar que o boi está morto.”




Um comentário:

  1. Maravilhoso Izabelle! Seu conto é realmente muito bem escrito. A linguagem e criatividade nas palavras são de um esmero próprio da cultura regional. PARABÉNS! Eu só posso felicitar voce e me sentir privilegiada em conhecer uma escritora tão sensível, com uma leveza na escrita que faz gosto ler. Isso é um dom divino!
    Abraço de luz!
    Jô Mendonça Alcoforado

    ResponderExcluir